domingo, 30 de agosto de 2009

Vícios e Virtudes



Ouvia vozes, vozes dentro de sua cabeça, que diziam que ele era um nada, um “Z* N******”, se fosse falar de um jeito americanizado seria um “J*** D**”. De tanto ouvir já se acostumara com isso, pelo menos com o nome adquirido. Quase um indigente. Z* C**** A*****.
Ele porém nem sempre dava ouvidos ao que ele próprio falava, ou um outro ele falava consigo mesmo. De tanto perder estava começando a perceber que chegava ao ponto de ganhar.
Acordara e de súbito teve a idéia de ir escovar os dentes e jogar uma água no rosto; e ao abrir o armarinho teve a súbita sensação de que seu corpo e alma deslizavam para uma outra dimensão e tudo percorria o infinito. Barreiras eram rompidas e uma linha tênue era destruída ao mesmo tempo em que envolvia o local. Parecia que estava prestes a desmaiar, que teria uma vertigem ou algo do tipo e podia dizer certamente que qualquer visão que tivesse naquele momento era mais do que real.
De repente parou e ficou a pensar, parecia estarrecido contemplando o infinito na banalidade de fitar um mísero, pequeno espaço de um banheiro que por mais simples que tivesse sido era agora um pedaço de um grande quebra cabeça, um enigma.
Deslocou-se um pouco e tomou uma ducha sem nem ao menos tirar as roupas que por sinal eram as mesmas que tinha usado numa festa no dia anterior e que realmente havia voltado no dia anterior, chegara pouco antes da meia noite; uma coisa muito rara de se acontecer.
Admirava as gotas d’água que caiam como estrelas cadentes e queria muito ele que elas pudessem possibilitar o pedido de um desejo qualquer que fosse, mesmo que banal e se realizasse. Estas mesmas gotas escondiam agora um melancólico silêncio anterior e interior que fazia companhia a um irritante tiquetaquear de um velho relógio de parede (7:35 40 TIC 7:35 41 TAC 7:35 42 TIC 7:35 43 TAC 7:35 4... 7:59 58 TAC 7:59 59 TIC 8:00 00 BLÉM, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BLÉM, T...). O tempo nunca é um passatempo.
Depois de se enxugar pegou a bermuda mais velha que encontrou, vestiu-a e abriu a janela pra entrar um pouco de ar numa casa que tinha um leve cheiro de mofo. Como a claridade ofuscara muito a sua visão optou por usar os seus óculos escuros. Sentou-se em uma poltrona, pegou tequila, uísque e nenhum gelo. Caubói. E após acender um cigarro encheu dois copos, cada um com uma bebida e bebia-as alternadamente e não se decidia se aquelas bebidas deveriam deixá-lo mais animado ou serviriam para deixá-lo sonolento para que pudesse voltar a dormir.
Pegou um porta retrato cuja foto mostrava ele ao lado de uma jovem loira com mechas vermelhas, absurdamente linda. Era sua irmã que agora era garota de programa apenas para irritar seus pais. Eles pertenciam a uma família de classe média alta e ela decidiu se prostituir porque não gostava de fazer nada de sua vida e seus pais insistiam para que ela estudasse ou trabalhasse. Já fazia mais de um ano que eles não se viam. Seu nome agora era D****, poderia ser D****, mas não era, era apenas D**** com y. Ela também gostava muito de algo que ele não conseguia lembrar, cigarros e bebida.
Ouviu alguém batendo na porta, mas não se preocupou em atender durante um bom tempo, passados dez minutos enfim foi à porta e para sua surpresa não havia ninguém, mesmo ele jurando que ouvira uma batida a menos de um segundo. Fechou a porta.
Voltou para sua poltrona, acendeu mais um cigarro. Nunca uma fumaça havia se tornado tão bonita. Sua beleza era impar e combinada com a sua leveza formava um belo espetáculo. Ele indagava como aquilo podia ser tão belo e causar tanto mal ao mesmo tempo. Não é de se admirar que as coisas mais belas sejam as mais fatais.
O cigarro estava chegando ao fim e ele usou-o para acender outro, na verdade usou indiretamente, pois queimou a foto com esse cigarro e acendeu o novo com o fogo da foto e percebeu que nada disso tinha acontecido, era apenas sua imaginação.
Apertava forte o porta retrato e desta vez sim acendeu um cigarro com o outro, logo após tirou a foto do porta retrato e não sabia porque se apoderou dele uma imensa vontade de chorar e isso não se devia ao fato de que logo queimaria a foto. De modo algum. Mas o que é uma simples foto queimada quando se têm negativos?
Como seria ótimo se tivéssemos negativos de nossas vidas e quando não gostássemos dela alguém poderia revelar-nos uma nova vida e poderíamos continuar daquele ponto melhorando cada vez mais. Era isso que ele queria, porém inconscientemente; seu lado racional não sabia disso.
Tentou 1984 faltando uma página para o final, mas sua vontade de beber, fumar, refletir e outras coisas mais eram maiores que um esforço intelectual literário.
Pegou o seu telefone e ligou para inúmeros números aleatórios e ficava ouvindo vozes que o xingavam sem razão e ao mesmo tempo com toda razão e ficou ouvindo mais um pouco até perceber que estava usando o telefone ao contrário e a parte que era destinada a falar estava em seu ouvido e a parte destinada a ouvir estava em sua boca. Atirou o telefone pela janela e começou a rir freneticamente, riu tanto e quando não podia mais rir começou a chorar. Tinha muito dinheiro e nenhuma felicidade. Não poderia ter pouco menos de dinheiro e muita ou pelo menos alguma felicidade? Não.
Definitivamente não.
Acendeu outro cigarro, ligou a TV e após alguns segundos de nenhuma utilidade desligou-a. Ligou-a novamente e tirou as cores; assistindo em preto e branco lembrou que o passado apesar de menos bonito e luxuoso é sempre melhor. Depois não só a cor saiu como também a imagem e deitou-se no sofá e ficou apenas ouvindo e entendeu que às vezes não é preciso ver, apenas sentir. Ouvir e imaginar.
A energia elétrica acabou e como conseqüência a TV desligou, mas isso não tinha importância. Naquele momento ele queria nadar, aproveitar a água da piscina para lavar a alma. Queria mais não foi. Não sabia se o que o impedia era preguiça ou falta de coragem.
Sentou-se no chão e ficou a brincar com um baralho e acendeu outro cigarro que por sinal era o último e ele não se lembrava se havia mais maços em sua casa. Se não houvesse ele teria que ir à padaria que fica logo na esquina, a poucos passos de sua casa. Mas não sabia se iria lá. Estava em um daqueles dias que não queria ver ninguém. Agora desejava ter um cachorro para disfarçar um pouco a solidão, pois dizem que o cão é o melhor amigo do homem e naquele momento precisava de um amigo.
Abriu uma gaveta e viu que havia um maço de cigarros ainda fechado que pertencera a uma garota que ele conhecera em uma festa e que havia trazido pra casa.
Acendeu um cigarro como se este ato fosse algo inevitável e começou a fumar e queimar as cartas do baralho com o cigarro, uma a uma, todas exceto a dama de copas. Naquele momento seria bom ter por perto uma dama e um coração; ficou a imaginar mulheres se materializando daquela carta, muitas honestas e fiéis, outras extravagantes e devassas, nenhuma que ele já houvesse conhecido.
Lembrou-se que devia beber também, bebeu e começou aproveitar a sensação de estar levemente embriagado. Era ótimo já ter bebido um pouco e estar naquele estado em que a bebida não é desculpa para coisa alguma a não ser a falta de caráter.
Agora um copo servia de cinzeiro e no outro eram misturadas as bebidas. Ainda caubói.
Passado um tempo apenas bebia e contava as horas para algo que nem sabia o que era e que provavelmente não era nada.
Ficou absorto e focado no que poderia ser o significado da vida e depois de muita bebida e cigarros percebeu que esta não era uma simples pergunta, pois apesar de todos nós vivermos, cada vida é uma vida e desta forma não há um único significado e sim bilhões atualmente e zilhões que já se foram.
Ascendeu mais um cigarro e ficou a pensar como a sua vida um dia seria queimada do mesmo modo como aquele cigarro estava sendo queimado. Tomou a sua bebida e ficou pensando como ele seria esquecido algum dia do mesmo modo como o copo após ser lavado se esquece da bebida. Ralhou com a superficialidade das coisas e das pessoas mesmo sabendo que há pouco tempo atrás ele mesmo se encaixaria neste perfil.
Fez companhia à fumaça ou talvez a fumaça é que estivesse fazendo companhia a ele nas trevas de um lar solitário e pequeno apesar da imensidão do terreno e da construção.
Construíra um nada, era o grande arquiteto e engenheiro do nada. A planta de sua vida tinha várias falhas e mesmo assim fora aprovada.
Voltou a pensar onde estaria sua irmã naquela hora, se ainda morava na mesma cidade, se gostaria de encontrá-lo, se ainda levava a mesma vida, e teve várias outras indagações a respeito dela. Procurou outra foto deles, revirou todos os lugares onde uma foto poderia estar, mas não encontrou nada atual além de negativos. Porém encontrou fotos da infância e colocou uma delas no porta retrato; foto em que os dois irmãos brincavam na praia e tudo parecia mais real que a realidade.
Guardou os cigarros, guardou a bebida, arrumou parcialmente a bagunça e começou a preparar um café sem pressa alguma de acabar.
De tanto perder ele estava começando a perceber que chegava ao ponto de ganhar. Mais do que real, uma coisa muito rara de se acontecer.
Não é de se admirar que as coisas mais belas sejam as mais fatais; o passado menos luxuoso é mais bonito e não é preciso ver, apenas sentir. Recordar e imaginar, sem preguiça ou falta de coragem o que provavelmente não é nada e tudo ao mesmo tempo. Com zilhões de significados.
Tomava o café sem pressa alguma e não lembrava mais de bebida, de cigarros, das pessoas e nem de si mesmo.
A bebia negra descia pela garganta e ao invés de desperta-lo foi deixando-o mais sonolento.
Em estado de introspecção não lembrava de mais nada exceto o café. Enfim uma válvula de escape.
Guardou os cigarros, guardou a bebida, arrumou novamente parcialmente a bagunça e começou a se esquecer do café sem pressa alguma de esquecer. Gradualmente veio o sono e ele voltou a dormir.

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